RESUMO HISTÓRICO

A Origem de Tudo

No prefácio da obra do historiador belga Marcel Dettiene, Mestres da Verdade na Grécia Arcaica (1967), seu colega francês Pierre Vidal-Naquet (1929-2003) escreveu:

“É próprio da linguagem científica poder atingir todos aqueles que fizeram o esforço de aprendê-la e ser convertível a qualquer dialeto humano. Não é negar o valor de outras experiências humanas – africanas, indianas, chinesas ou ameríndias – admitir que essa linguagem, sobretudo na forma em que está disseminada hoje, teve origem na Grécia… O fato é que a razão, ainda que grega, deve ser reposicionada na história. É na história grega, do homem grego, que devem ser buscados os traços fundamentais que explicam o abandono voluntário do mito, a passagem das estruturas organizadoras inconscientes para uma tentativa deliberada de descrever ao mesmo tempo o funcionamento do universo (a razão dos físicos jônios e italianos) e o funcionamento dos grupos humanos (a razão histórica, de Hecateu, Heródoto e Tucídides).“

O filósofo britânico Bernard Williams (1929-2003) foi ainda mais contundente na defesa da relevância dos gregos para o ocidente (e para o mundo moderno consequentemente) em seu livro Shame and Necessity (1993):

“Os gregos antigos estão entre nossos ancestrais culturais e nossa visão deles está intimamente ligada à visão de nós mesmos. Aprender sobre eles é imediatamente parte da nossa autocompreensão e continuará a ser assim mesmo que o mundo moderno se estenda ao redor da terra e incorpore também outras tradições. Essas lhe darão novas e diferentes configurações, mas não anularão o fato de que o passado grego é especialmente o passado da modernidade e que o mundo moderno é uma criação europeia presidida pelo passado grego.”

Essas visões podem ser classificadas por alguns como chauvinistas por serem muito centradas no pensamento do ocidente, porém, não são facilmente refutadas quando avaliadas, ao menos pelos seus efeitos práticos. No espaço de menos de três séculos os gregos (ou hellénes, como prefiro chamá-los) revolucionaram várias áreas do conhecimento e do comportamento humanos que prevalecem até os dias atuais: a política (com a democracia e as artes da política e retórica), a justiça (com o conceito da igualdade legal e a criação dos julgamentos por cortes), a filosofia (com suas diferentes áreas: ética, lógica, o racionalismo e o humanismo, que colocou o homem, e não os deuses, como medida de todas as coisas), a cultura (com a invenção do teatro, o estudo da história, os esportes, além de novas técnicas nas artes da escultura e da arquitetura), a medicina (com o conceito de uma mente sã em um corpo saudável), a matemática (com as regras básicas da geometria, a ideia de uma prova matemática formal, descobertas na teoria dos números, chegando perto de estabelecer o cálculo integral) e a astronomia (primeiros modelos geométricos para explicar o movimento aparente dos planetas, a proposição de que a Terra gira em torno do seu eixo e a primeira sugestão de um sistema heliocêntrico).

Dois feitos que considero particularmente impressionantes são: (i) O cálculo da circunferência da Terra feito pelo matemático Eratosténes de Kiréne, bibliotecário chefe da grande Biblioteca de Alexandria, que viveu no século III a.C. Eratosténes usou princípios de trigonometria a partir da sombra de estacas e suas projeções em duas localidades no Áigiptos (Egito) distantes cerca de oitocentos quilômetros uma da outra. Segundo ele, a medida teria entre 39.060 e 40.320 km, valor muito próximo ao correto que é de aproximadamente 40.075 km. Ironicamente, dois mil e trezentos anos depois há quem ainda conteste que o planeta seja mesmo esférico; (ii) A construção de um dispositivo para calcular os movimentos dos planetas e prever eclipses com décadas de antecedência. Conhecido como o “mecanismo de Antikítera” (por ter sido encontrado em um naufrágio ao largo da ilha com o mesmo nome), pode ser considerado uma espécie de ancestral do computador astronômico que usava uma engrenagem diferencial para atingir seus fins. Sua sofisticação é comparável à dos relógios produzidos na Europa a partir do século XVIII.

Um povo cioso de sua liberdade, ousado...e muito briguento

Apesar de suas brilhantes realizações, no plano político a civilização grega foi marcada pela inexistência de uma unidade central e pela formação das póleis (ou cidades-estado). Em suas mais de 1.400 páginas, o impressionante livro An Inventory of Archaic and Classical Poleis (dos autores dinamarqueses Hansen & Nielson) lista 1.053 póleis, sem contar outras 300 fundadas durante o período helenístico. Todos esses pequenos estados prezavam a sua independência acima de tudo e se orgulhavam de não se curvarem a outros povos nem a déspotas internos, contra os quais se sublevaram muitas vezes. Por essa razão, os hellénes desprezavam civilizações como a dos persas por eles serem regidos por um Rei. Contudo, essa falta de unidade teve um preço, pois ocasionou um estado de guerra quase endêmico que se revelaria uma séria fragilidade.

Entre os séculos VIII e VII a.C., com o aumento da pressão populacional, das frequentes disputas e da escassez de terras aráveis, os hellénes tornaram-se intrépidos navegadores e expandiram seus horizontes para muito além de seus territórios de origem. Nesse período foram fundadas muitas colônias ao longo das margens do Mediterrâneo e de seus mares interiores. Em seu diálogo Fédon, Pláton cita uma suposta fala de seu mestre, Sokrátes: “Nós hellénes habitamos uma pequena porção da terra… vivendo ao redor do mar como formigas e sapos ao redor de um lago.”

Em sua escola em Atênai (sec. IV a.C.) o filósofo Aristotéles teria estudado com seus alunos cerca de 158 constituições diferentes. O autor identificava três tipos legítimos de regime: Monarquia, Aristocracia e Democracia Constitucional e suas formas perversas: a Tirania (como uma perversão da Monarquia), Oligarquia (como uma perversão da Aristocracia) e a Democracia populista e seus demagogos (como uma perversão da Democracia regida pela lei).

Não por acaso, com suas querelas constantes os hellénes levam o crédito de terem desenvolvido o que seria chamado de “a maneira ocidental de guerrear”(1). Em vez de emboscadas, escaramuças, combates indiretos e do uso de grandes exércitos com guerreiros mal armados, típicos dos povos orientais, os hellénes conceberam um confronto feroz, breve e de relativamente baixa escala entre homens cobertos de bronze e com armas letais: os choques de falanges de infantaria pesada. As guerras passaram a ser resolvidas assim, de forma (quase) racional, pelo emprego objetivo de força máxima contra o inimigo. Após um curto e brutal confronto em um local muitas vezes pré-determinado, tanto os vencedores como os perdedores podiam voltar às suas fazendas e aos seus afazeres. A ética entre guerreiros impunha que os mortos de ambos os lados fossem respeitados com uma trégua imediata e temporária ao final de cada combate.

(1) The Western Way of War – Infantry Battle in Classical Greece (Hanson, Victor D., 1989)

Inimigos espreitam

No século V a.C. as antigas civilizações egípcia, hitita, lídia e mesopotâmicas (suméria, assíria e babilônica) já tinham desaparecido havia muito tempo ou tinham sido absorvidas pelo império persa, transformando-se em satrapias deste. A república romana, por sua vez, era ainda irrelevante e se restringia à minúscula região do Lácio, no centro da Aitalía (Itália). Além do vizinho mais próximo, com o qual compartilhavam língua e costumes, os potenciais inimigos das póleis situadas na Helláda continental eram os persas, a leste, e os reinos bárbaros ao norte (ilírios, makedónios e tráikes). Suas colônias tinham também suas próprias ameaças. Aquelas situadas nas costas do Pôntos (Mar Negro) tinham de encarar os nômades skítae, além de tribos tráikes; as situadas onde hoje são os territórios das atuais França e Espanha tiveram de se defender de tribos kéltoi (celtas) que habitavam o centro e o norte da Europa; as colônias no norte da África tinham as tribos berberes como potenciais ameaças; e no mar os cartagineses espreitavam as colônias dos hellénes da Sikelía (Sicília) e no sul da Aitalía.

Em 490 a.C. os hellénes sofreram a primeira séria ameaça de conquista. Após engolirem todas as terras desde a Índia até a margem do Aigáios (Mar Egeu), os persas tentaram anexar seus territórios ao seu império. Em sua primeira tentativa, feita unicamente por mar, os invasores foram vencidos ao desembarcarem na planície de Maratóna, a leste de Atênai. Diz a lenda que, após a batalha, um mensageiro atenáio (Feidippídes) teria corrido cerca de 40 km desde Maratóna até a cidade para informar a vitória e alertar sobre a possível investida da frota persa contra o Peiraêus, tendo morrido vítima de exaustão logo depois de chegar. Embora essa versão seja hoje contestada por muitos, acabou por se tornar a oficial. Nos primeiros Jogos Olímpicos da era moderna, disputados em Atenas em 1896, foi instituída a primeira corrida com o nome da batalha tomando como percurso o mesmo percorrido pelo corredor vinte e quatro séculos antes. Nos jogos de Londres em 1908 a distância seria alterada para 42.195 km e assim se manteve até hoje.

Dez anos depois de Maratóna, em 480 a.C., os persas tentaram novamente e, desta vez, estavam muito mais bem preparados. Cruzaram o Helléspontos (Dardanelos) com um imenso exército de milhares de homens acompanhado de uma gigantesca frota com mais de mil navios. Em terra, os invasores trucidaram os bravos lakedaimónioi sob a liderança de seu rei Leonídas nas Termopílai (que ficaram conhecidos como os 300 de Spárte) e arrasaram Atênai. Meses depois, contudo, sua frota foi batida ao largo da ilha de Salamina e, no ano seguinte, seu exército foi definitivamente derrotado na planície de Plátaia, regressando para a Ásia para jamais tentar novament

A Guerra Fria

Após a vitória, os aliados hellénes começaram a competir pela hegemonia sobre seu mundo. Os atenáioi e os lakedaimónioi formularam estratégias diferentes. Os primeiros formaram a liga de Délos, uma associação de vários estados que deveriam contribuir com dinheiro e navios para enfrentar uma provável nova ameaça persa. Os lakedaimónioi, por sua vez, recolheram-se ao Pelopônnesos e reforçaram os laços com seus aliados tradicionais, todos eles situados na mesma península.

Vale citar Tukidídes:

“Os lakedaimónioi mantiveram sua hegemonia sem transformar os aliados em tributários, mas cuidando de que estes tivessem uma forma oligárquica de governo, de conformidade com o interesse exclusivo da Lakedaimónia; os atenáioi, por seu turno, fizeram com que as cidades aliadas paulatinamente lhes entregassem as suas naus, à exceção de Kíos e Lésbos, e impuseram a todos um tributo em dinheiro. Desta forma os recursos próprios dos atenáioi disponíveis para a guerra tornaram-se maiores que os dos lakedaimónioi e seus aliados ao tempo em que a aliança anterior estava intacta e forte.”

O crescimento do poderio atenáio causou apreensão aos lakedaimónioi e um estado de guerra fria se estabeleceu entre os dois estados hegemônicos, havendo mesmo alguns encontros bélicos pontuais (Tánagra e Oenófita, em 457 a.C.).

Vinte e cinco anos após a criação da liga, o tesouro com a contribuição dos muitos membros (entre 150 e 300) foi movido da ilha para a acrópole de Atênai e o que eram contribuições passaram a ser tratados como tributos imperialistas. Nos anos seguintes alguns dos membros tentaram se sublevar sem sucesso contra esse domínio.

Ainda se tentou um tratado, chamado de “Paz dos Trinta Anos”, que duraria poucos anos. Após uma série de desgastes e ações mal calculadas, especialmente por parte dos atenáioi, o medo foi o estopim que deflagrou o conflito propriamente dito, como registrou Tukidídes:

“Os fundamentos de sua disputa eu exporei primeiro, para que ninguém jamais tenha de indagar como os hellénes chegaram a se envolver em uma guerra tão grande. A explicação mais verídica, apesar de menos frequentemente alegada, é, em minha opinião, que os atenáioi estavam tornando-se muito poderosos, e isto inquietava os lakedaimónioi, compelindo-os a recorrerem à guerra.

A Guerra do Peloponeso

A Guerra do Pelopônnesos (ou segunda guerra do Pelopônnesos como alguns historiadores a chamam) é menos conhecida pelo grande público, embora tenha sido muito mais longa e dramática. Pela sua amplitude temporal, ela já não pode ser entendida pela mesma dicotomia que caracterizou a guerra contra os persas: do fraco contra o forte, ou do justo contra o injusto, ou mesmo do bem contra o mal. Ao invés disso, foi um conflito trágico e brutal, sem heróis, cujas consequências se revelariam devastadoras para a civilização grega como um todo. No decorrer de suas quase três décadas inúmeras atrocidades foram cometidas por ambos os lados e muito mais hellénes tombaram pelas armas de outros hellénes do que nas lutas contra os persas ou contra qualquer outro inimigo até então.

Costumo comparar essas duas guerras antigas com dois eventos similares bem mais recentes na história dos Estados Unidos, mantendo, é claro, as devidas proporções. Em minha analogia, a guerra contra os persas equivale à guerra de independência travada pelas treze colônias contra o Império Britânico entre 1776 e 1783. Essa foi a boa guerra, a guerra heroica e justa, durante a qual colonos mal armados e em menor número lutaram por sua liberdade, vencendo forças profissionais muito mais bem preparadas. Já a Guerra do Pelopônnesos equivale à guerra civil entre os estados do norte contra os do sul ocorrida entre 1861 e 1865. Essa foi a guerra suja, a guerra dos massacres e da destruição desenfreada. Nela, sulistas e nortistas se mataram aos milhares, legando traumas que ainda não se resolveram, um século e meio depois. Ao contrário dos norte-americanos, que conseguiram se recuperar de seu conflito fratricida, as fragilizadas póleis gregas não lograram o mesmo destino e viriam a sucumbir frente aos macedônios de Felipe II e Alexandre poucas décadas mais tarde.

A Guerra do Pelopônnesos pode ser melhor entendida se dividida (apenas para efeito didático) em três períodos distintos:

  • A Guerra Arquidâmica, entre 432 e 421 a.C., marcada pelas invasões dos lakedaimónioi na Attiké conduzidas pelo Rei Arkídamos e pelos reides marítimos dos atenáioi nas costas do Pelopônnesos. A estratégia dos atenáioi foi a de se enclausurar dentro de suas muralhas e não oferecer combate terrestre aos lakedaimónioi, mestres nesse tipo de guerra, mas fustigá-los pelo mar, seu teatro preferido de operações. Porém, eles não contavam com uma epidemia, provavelmente de febre tifoide, que se alastrou pela cidade atulhada de gente e que vitimou até um quarto de sua população, enfraquecendo seu potencial de combate. Anos mais tarde, após o cerco e aprisionamento de cerca de 400 spartiátai na ilha de Sfaktéria (no oeste do Pelopônnesos), os dois lados estavam exaustos após onze anos de guerra e decidiram celebrar um novo tratado de paz, conhecido como paz de Nikías.

  • O segundo período é rotulado como “A Paz de Nikías e a Expedição Siciliana”(2), entre 421 e 413 a.C. Embora leve esse nome a guerra continuou por boa parte desse período, marcado por alguns eventos como a vitória dos lakedaimónioi em Mantinéia (418 a.C.), o bloqueio atenáio à ilha de Mélos (416-415 a.C.) e o desastre atenáio ao tentar conquistar Sirákousai, na Sikelía (415-413 a.C.). Neste período, os oligarcas atenáioi, aproveitando-se dos erros dos democratas ao incentivarem a expedição fracassada, tentaram impor um regime oligárquico que ficou conhecido como o “Golpe dos Quatrocentos”. O novo governo acabou por ser derrubado meses mais tarde e a democracia radical logo se impôs novamente.

  • O terceiro período é chamado de Guerra Iônica, pois o teatro de operações mudou do continente europeu para as costas da Iônia (ou Jônia), na atual Turquia, e para os estreitos de Dardanelos e o Bósforo, passando de terrestre para eminentemente naval. Enfraquecidos pelas perdas na Sicília, os atenáioi são obrigados a defender seu império de sublevações de aliados. Enquanto isso, com a ajuda persa, os lakedaimónioi e aliados constroem uma frota de guerra para combater seus inimigos, ao mesmo tempo que decidem manter uma posição permanente na Ática (sem depender das invasões de verão) e fortificam o dême de Dekéleia para manter os atenáioi afastados de suas fazendas, as quais passam a destruir sistematicamente.

É nesse estágio que a guerra se encontrava em 406 a.C., início de minha história, quando atenáioi e lakedaimónioi estavam, mais uma vez completamente exaustos e quase sem recursos para manter suas imensas frotas de navios de guerra em operação.

Os principais eventos (desde muito tempo antes da guerra) estão listados na página http://hellenika.com.br/cronologia.

(2) The Peace of Nicias and the Sicilian Expedition (Kagan, Donald, 1981